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sábado, 7 de julho de 2012

Artigo sobre o livro "Roteiro sentimental", de Ronaldo Cunha Lima

Hoje o Brasil perdeu um político e a Paraíba, especialmente Campina grande, perdeu um poeta e é sobre esse último que vou falar. o poeta Ronaldo Cunha Lima fez parte de minha adolescência, mesmo antes de saber o que era política eu admirava o poeta. Ainda não sabia o peso e a importância de um voto quando Ronaldo se candidatou para prefeito de Campina a primeira vez e eu ia a procura dos seus comícios só para vê-lo rimar, eu ficava encantada com a maneira que ele se dirigia ao povo, através da poesia. O tempo passou e, assim como ele também fui-me de Campina para outros horizontes e voltei em 2006 quando iniciei o Mestrado em Literatura e interculturalidade na UEPB. No "II Colóquio Cidadania Cultural: diversidade cultural, linguagens e identidade", resolvi escrever um artigo sobre o livro "Roteiro sentimental", de Ronaldo e coincidentemente encontrei com ele em um dos eventos da Universidade e disse que pretendia fazer um artigo sobre a obra dele. Ele agradeceu e me passou o e-mail para que eu lhe enviasse o trabalho. Vou colocar pra vocês  o conteúdo dos dois emails que trocamos em 2007 e em seguida o artigo feito sobre a obra de Ronaldo.

Poeta, acho que não lembra mais do nosso encontro no Colóquio de Gêneros e Sexualidade promovido pela UEPB. Encontramo-nos na porta do evento, quando peguei o seu e-mail. Quero dizer que o tratamento de poeta, não é esquecimento de vossa posição política, é que aqui não cabe o ilustre deputado, pois é uma conversa de poetas. Na verdade, lendo o seu Roteiro
Sentimental também voltei um pouco a infância e também lembrei da sua primeira campanha para prefeito de Campina, eu ainda adolescente, corria atrás dos comícios, não para ver o político, mas para ouvir o poeta.
Portanto a admiração vem de longe. Hoje depois das letras, estou cursando o mestrado em Literatura da UEPB. Sou professora de uma faculdade em Paulo Afonso BA-. Já tenho também alguns escritos que gostaria de lhe mostrar quando nos encontrarmos, pois espero que esteja no colóquio aonde irei apresentar o trabalho que estou lhe mandando em anexo. Uma observação do livro Roteiro Sentimental de sua autoria. Sei que talvez não tenha ficado a contento, mas o tempo é muito curto para se fazer um trabalho de pesquisa. Gostaria de receber uma resposta com a sua opinião sobre o trabalho.
Mandarei em breve dia e hora da apresentação do trabalho que será apresentado no II Colóquio Nacional de Cidadania Cultural, em outubro.

Abraços de uma campinense também apaixonada!
Maria do Socorro Pereira de Almeida

ele me respondeu com o seguinte email:

Você foi o meu caminho de azul na volta para casa. Foi o conforto que me fez esquecido do medo turbilhonando na visão da turbina de além-nuvens, inserida em meu campo visual como se fora parte de mim – braços, pernas e coração vencendo espaços, pulsando forte entre a infinitude do universo e a terrenidade da minha busca de ser e estar. Você, definindo e confrontando “Espaço, Identidade, Saudosismo e Cidadania no Lugar de Memórias” minhas, fez-me passageiro de emotivas visões campinenses e antecipou saudades, mesmo estando eu bem perto da hora de chegar. Referências que me orgulharam, conceitos que comigo firmaram laços fraternais, reminiscências que acolhi dos ontens para, em seus escritos, senti-los transitividade do agora, foram graças que me afagaram o ego. Sou-lhe grato pelo texto, que comigo compôs agradável parceiragem até a hora de aterrissar, do despertar o cinto e me sentir, mais uma vez, dono das minhas idas e vindas no correr da vida, vida afora. Parabenizando-a pelo trabalho e abraçando o seu abraço,

Ronaldo Cunha Lima

II COLÓQUIO NACIONAL DE CIDADANIA CULTURAL (2007)
MARIA DO SOCORRO PEREIRA DE ALMEIDA
MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE – MLI - UEPB
ESPAÇO, IDENTIDADE, SAUDOSIMO E CIDADANIA NO LUGAR DE MEMÓRIA DE RONALDO CUNHA LIMA

RESUMO

Este estudo tem como objetivo uma observação da obra Roteiro Sentimental, de Ronaldo Cunha Lima, no intuito de evidenciar o pertencimento do sujeito ao espaço raízes, numa tentativa de afirmação de identidade e cidadania. Visa também observar os aspectos culturais através da linguagem poética e a relação de intimidade e sentimento com o espaço-ambiente, numa perspectiva de ninho.
Palavras chave – Sujeito. Espaço. Identidade. Cidadania, Ronaldo Cunha Lima

RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo una observación de la obra Roteiro Sentimental, de Ronaldo Cunha Lima, en el intuito de evidenciar el pertenecimiento del sujeto al espacio raíces, en un intento de afirmación de identidad y ciudadanía. Visa también observar los aspectos culturales a través del lenguaje poético y la relación de intimidad y sentimiento con el espacio-ambiente, en una perspectiva de nido.

Palabras clave – Sujeto. Espacio. Identidade. Ciudadanía. Ronaldo Cunha Lima

INTRODUÇÃO

A literatura, entre outras coisas, possibilita a volta ao tempo, funde passado e presente e pode trazer de volta toda uma vida para que se possa sentir novamente o gosto de infância e juventude, reviver momentos felizes e, também, aprender com os tropeços.

Esse trabalho visa o cotejo do espaço evidenciado pelo eu poético, através da relação do homem com o espaço em que ocupa, assim como também a representação do espaço memória que impulsiona o fazer poético. O saudosismo que é essencialmente expresso na obra dá, ao sujeito, uma identidade e autonomia para se fazer elemento inerente às raízes, das quais se ergue tronco para frutificar o poema e explanar os recantos guardados nas paredes da memória.

Como referencial teórico nos reportamos aos estudos das representações do espaço através de estudiosos como Bachelard, Yi Fu Tuan, e Milton Santos, também nos reportamos a Zygmunt Bauman no intuito de entender melhor sobre identidade. Também nos reportamos a percepção fenomenológica de Merleau Ponty, no intuito de entender o sentimento do eu poético em relação ao espaço ambiente que, muitas vezes, nos chega através de metáforas, e a outros estudos que nos embase nas ideias propostas pela pesquisa

O resgate de Campina Grande, por Ronaldo, além do prazer do reencontro com o passado é também uma possibilidade de encontro de “Campina Grande” com sua população, inclusive os mais jovens, aqueles que precisam criar raízes com a sua terra, desencadeando processos de revalorização de seus espaços e tempos pretéritos. É também revelador da valorização do lugar pelo sujeito, pelo seu conteúdo sintagmático na afirmação de identidades e cidadania como se poderá depreender dos poemas aqui expostos.

A busca do homem por cidadania é inerente a cada indivíduo que, de alguma forma, busca uma condição de ser melhor e uma posição digna de estar no mundo. Essa perspectiva se relaciona com a percepção que cada indivíduo tem do mundo em que vive e das necessidades próprias a cada situação de vida. Dessa forma, cada um procura, de acordo com a sua necessidade, mostrar-se no mundo e para o mundo. O poeta, por sua vez, não foge a essa perspectiva e, na condição de homem do seu tempo, uma vez que a literatura reflete e revela a visão de mundo do homem em cada época, ele expõe-se sentimentalmente, deixando vir à tona, as evidências do sujeito cultural, social, econômico e político, numa fusão de eus que tece o tecido poético.

O poeta, de certa forma, não se nega como bem assevera Drumonnd, por se tratar de um ser de várias faces e por se fazer instrumento de externalização dos sentidos, desejos, anseios, receios, amores e saudades, sentimentos que estão ligados ao seu cotidiano e ao espaço que ocupa tanto socialmente quanto fisicamente. Nessa condição sentimental o eu grita, fala, chora, canta e rir; constrói e reconstrói, busca, plaina, voa, conquista e se entrega aos braços da sua “deusa” que o toma incondicionalmente para expressão da alma. Ela, a poesia, é a senhora majestade dos servos poetas.

É nessa perspectiva de sentimento e ufanismo que esse estudo busca, em Roteiro sentimental, de Ronaldo Cunha Lima, a condição de pertencimento ao espaço de enraizamentos e a expressão de cidadania do indivíduo que se reconhece parte do espaço que ocupa e que tenta mostrar-se como está, emocionalmente, ligado a esse espaço, através de um saudosismo que traz de volta cantos cantados e personagens recriados; lugares revisitados, num jogo de memória que revela, sem mistérios, toda uma vida, através de versos “fragmentos urbanos e humanos” entre a memória e a saudade.

Saudade é uma denominação exclusiva da língua portuguesa que designa um sentimento de falta de algo ou de alguém; a necessidade de preenchimento de uma vaguidão do espírito que chora um passado. Esse estranho sentimento que inquieta a alma dá luz aos versos desde que o homem os fez pela primeira vez, mesmo sem conhecer o nome, mas já se rendia a ela, numa cumplicidade poética.

Esse sentimento é a causa motriz da busca ao passado, numa rasgadura das malhas do tempo e permite, ao homem, encurtar o espaço que separa o ontem do hoje, através da lembrança. Por outro lado, a palavra sujeito cria o comum entre os homens, na sua real condição de ser e permite observar o caráter universal do homem nas suas particularidades culturais e sentimentais, através das ações e comportamentos sociais e intelectuais.

Juntando esses aspectos observa-se o homem e o que lhe é visceral, expresso através das letras que se juntam para trair o fingimento poético e mostrar o mundo pelos olhos do eu que fala nas entrelinhas. Assim, se vê um poeta que canta suas raízes, sua formação social, cultural e intelectual, num passeio pelos recantos que a poeira do tempo cobriu.

POESIA E ESPAÇO NOS FRAGMENTOS URBANOS E HUMANOS

Procuro em Campina Grande,
Na saudade que me abrande,
A volta ao tempo menino,
O tempo do desatino
Onde a alegria se expande
Por entre risos e graças,
Nas brigas e nas pirraças,
Tempo de adolescente,
Quando fico frente a frente
Com suas ruas e praças.
(Ronaldo Cunha Lima)

No entendimento da maioria das pessoas, mesmo os estudantes de Geografia, o espaço é simplesmente o lugar indicado no mapa ou um espaço perimetrado onde vivem alguns indivíduos, já a Geografia Humanista, segundo Yi Fu Tuan, (1982 p. 143), “procura um entendimento do mundo humano através do estudo das relações das pessoas com a natureza, do seu comportamento geográfico, bem como dos seus sentimentos e idéias a respeito do espaço e do lugar”.

Partindo dessa premissa se pode dizer que esse estudo perpassa pela Geografia Humanista no sentido de que busca a relação do eu poético com o espaço, tanto do passado quanto do presente, como viveu e o que fazia parte desses espaços, numa concepção de sentimento e saudosismo que faz a memória voltar no tempo e revisitar os espaços de sonhos e realidades vividos. Nesse contexto, também são prestigiadas as concepções que trazem à tona, a importância identitária da poesia.

Por isso é possível se dizer que a literatura, seja em poesia ou prosa, provoca a alma humana, que busca imagens apagadas, imagens de uma realidade passada, que está relacionada a um espaço e que volta, contrariando a passagem do tempo. Vão se construindo imagens através de outras imagens. Bachelard em A poética do espaço trata das intimidades e dos valores existentes entre a casa e seus habitantes. A casa é parte de nossa vida e a relação com esse espaço, seja ele temporário ou não, geram imagens que alimentam valores. Assim ele diz que:

"Uma espécie de atração de imagens concentra a imagem em torno da casa. Através das lembranças de todas as casas em que encontramos abrigo além de todas as casas que sonhamos habitar é possível isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justificação do valor singular de todas as nossas imagens de intimidade protegida"? (BACHELARD, 2005, p.23)

O crítico faz essa indagação e afirma que não é a descrição ou simples fato do habitar, mas a representação de valores que vão sendo criados ao longo do tempo e da relação com o espaço, proporcionada também pelos fatos ocorridos nesses espaços e que marcam, de alguma forma, o seu habitante. Assim vemos em Roteiro Sentimental a expressão da importância do espaço para o eu poético que, ao descrevê-lo, coloca-se como fruto dessas raízes que, quando nos verdes anos, era todo o mundo e agora na maturidade, depois de conhecer outras partes e outros mundos, tem, mais do que nunca, a certeza de pertencimento ao espaço, mesmo que transformado pelas ações do tempo e dos homens pelos tempos vividos e assim confessa em Monólogo de um poeta, (fragmentos)

[...] “vens de longe ... qual cidade
Essa tua mocidade
Deixa agora de escutar?”
__ Venho de Campina Grande
Que, por mais terras que eu ande,
Nunca vou querer deixar.
[...]Cumpro fases, faço versos,
verso com o bem e o adverso
sem de Campina esquecer.
“Essa voz estremecida
O que fizeste nessa vida
Que levavas na sacola?
__Fiz o bem sem ver a quem,
não esqueci de ninguém,
Campina foi minha escola!
“Eu perguntei do presente
aber como é que se sente
do tempo que se perdeu!”
__ Lavrei, plantei e colhi
Campina, eu nunca esqueci,
Campina não me esqueceu

 O lugar é lido por cada indivíduo de forma diferente. Cada um tem uma concepção de lugar de acordo com a situação vivida e do sentimento que surge, a partir da relação com esse lugar. Para Tuan o espaço se transforma em lugar a medida que se conhece, se convive e se cria uma afetividade com ele, logo, para o eu poético acima, Campina é um lugar, o seu lugar. As aliterações com som de S no poema podem simbolizar a saudade, o passado, carregam o poema de sentimento e, ao mesmo tempo dão sonoridade aos versos. Na terceira estrofe “a voz estremecida”, pode ser o choro causado pelo sentimento. Das seis estrofes do poema em quatro, está o nome de Campina Grande, essa repetição enfatiza o lugar de memória do eu poético.

A relação com o espaço pode ser de intimidade ou apenas de conveniência temporária. Assim esse espaço terá sempre lugar no imaginário até que outro apareça e venha também as comparações e esse espaço vire lembrança, pois como afirma Bachelard:

"Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para o seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem. Assim a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos". (2005 p. 25)

Bachelard fala da casa, mas coloca também em sua obra o ninho e ninho, ideologicamente, é todo espaço que consideramos como espaço raízes, o espaço ao qual pertencemos. Ao se relacionar com o espaço, esse passa a ser um lugar incomum para o indivíduo e refletirá no discurso do mesmo, uma vez que esse revela sua visão de mundo. Assim, o ninho, para o eu poético de Roteiro Sentimental, é Campina Grande, pois o lugar é apresentado numa condição de casa, de lar, de lugar de memória, como se ver no poema a seguir:

Estou aqui

Meus passos tão perdidos de saudade
Que entrei na tarde sem pedir licença
No peito, a mesma reza, a mesma crença
Na certeza do amor desta cidade.
Entrei, Campina Grande, e na verdade
Jamais faltou em ti minha presença
Nas ruas e ladeiras, a querença
De minha infância e de minha mocidade.
Agora que retorno, o sol já posto
Marcando a cor do tempo no meu rosto,
E torno ao meu viver junto de ti,
Percebo que, apesar de meus cansaços,
Nunca saí do amparo de teus braços,
Nunca fugi de meus dias daqui!

Observa-se que o eu poético volta e é como se nunca tivesse saído do lugar, pois descortinam a memória as vivências de infância. Na segunda estrofe “o sol já posto” representa a passagem do tempo que se enfatiza ao longo da estrofe pelas colocações usadas: “a cor do tempo no meu rosto, Apesar dos meus cansaços”. Nesse contexto, o eu poético evidencia também a percepção fenomenológica expressa através da natureza, a concepção real da passagem do tempo que lhe causa um sentimento e é metaforizada pela posição do sol.

Embora o lugar, de um modo geral, seja amplo, um determinado espaço será eleito como ninho ou como algo importante na vida do sujeito, mesmo que isso venha à tona, através da memória, como é o caso do poeta em questão. Nessa perspectiva o lugar detém uma individualidade, haja vista participar da individualidade de cada sujeito distintamente, nesse contexto (SILVEIRA apud SOUZA 1998 p. 91) afirma que:

"Embora os eventos, pela sua materialização nos lugares, estejam ligados a uma estrutura única, eles não perdem sua individualidade [...], pelo contrário, contém cada vez mais “raridade” porque tem sua própria totalização parcial. O indivíduo não desaparece, ele é entendido como uma estrutura em movimento. Ele não se restringe aos limites do local, mas nele acontecem eventos que trazem diferentes tempos, e assim o lugar torna-se totalidade parcial incompleta, inacabada, pois a trama dos eventos não atinge sua completude no lugar, mas no mundo em movimento".

Nessa perspectiva fica claro o lugar recortado e efetivamente exposto, sendo um mundo de experiência, ordenado e com significado. O significado ou a natureza dele se evidencia na maneira como se evidencia esse espaço, o que se pode ver na relação homem, tempo e espaço que perpassa a obra de Cunha Lima, em todos os poemas do seu Roteiro Sentimental e que mostram a afetividade gritante, além do saudosismo como protesto à evolução que, mesmo necessária, apaga os espaços naturais criados espontaneamente, culturalmente, por outros programados, em prol de um desenvolvimento ilusionista. Assim, vê-se nos poemas abaixo a busca do elo perdido que a memória revive.

Maria Fumaça

Maria fumaça, o trem,
Outra função hoje tem
Pra não sair do combate.
Da estação, não se mudou,
Porém se transformou
Em restaurante e boate.
O Curtume dos Mota

O velho curtume dos Mota,
Hoje Parque da Criança,
Preservou como lembrança
Sua antiga chaminé,
E também ficou guardada
Em seu portão de entrada
A imagem de São José.

Milton Santos mostra em A Natureza do Espaço (2006), que este sofre transformações o tempo todo, seja pela condição mutante da própria natureza, seja pela ação humana. No poema acima o eu poético retrata esse evento pela ação do homem que, conforme seus interesses, transforma as faces das paisagens. Por outro lado o eu poético mostra a fusão entre passado e presente e a resistência do tradicional, tentando se acomodar a modernidade, aspecto em que se vê também as expressões e transformações culturais tanto do passado que andava de trem e a pratica do trabalho com o couro, quanto do presente que leva o jovem a boate e a criança que necessita de um espaço fora de casa para as brincadeiras.

Tão fechada quanto a definição de espaço, está a definição de paisagem para a maioria das pessoas, uma vez que os próprios dicionários mostram um quadro ou uma parte de um terreno que abrange um lance de vista. Porém no conceito geográfico, esse espaço é tratado da seguinte forma:

"Termo usado para descrever o “aspecto” global de uma área. A paisagem física refere-se aos efeitos combinados das formas do terreno, vegetação natural, solos, rios, e lagos, enquanto a paisagem cultural (ou humana) inclui todas as modificações feitas pelo homem (vegetação cultivada, comunicações, povoações, minas a céu aberto, pedreiras etc)" (SMAILL e WITHERICK 1992 p.191 apud CAVALCANTI 1998 p. 97)

Percebe-se que a paisagem é muito mais abrangente do que o conceito que se tem nos dicionários e para muitas pessoas e que pode ser lida conforme a concepção de cada sujeito uma vez que é parte constituinte do espaço vivido. Essa concepção reforça a percepção fenomenológica do ambiente vivido. Assim Souza afirma que:

"A paisagem está na dimensão da percepção e a percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Por isso pode ser mais enriquecida a análise que ultrapassa a paisagem como aspecto percebido, portanto no âmbito do subjetivo, para atingir seu real significado, numa compreensão de seus determinantes mais objetivos". (CAVALCANTI, 1998 p. 99)

Desta feita se pode dizer que, Cunha Lima, entre outros aspectos, compõe em seus poemas, uma visão também paisagística de Campina Grande e coloca nela a representação desses cantos através dos versos que louvam essas paisagens conforme a percepção que tem delas:

Alto da Bela Vista

Da Bela Vista, no alto
Vê-se Campina deitada.
Uma rainha iluminada,
Iluminando o planalto

O espaço, além de sua condição física real, também existe no imaginário coletivo e individual. Esse fenômeno permite à inspiração, idealizar situações vividas em determinados lugares ou ambientes que são mapeados pela emoção e paisagificado pela imaginação, assim funciona o espaço poético, fenomenologicamente expresso.

O espaço real também é retratado e mostra a condição de cada indivíduo de estar no mundo. Mas o espaço real também se torna abstrato ao ser transportado pela imaginação e resignificado em determinadas situações literárias, assim como também quando é reavido pela memória e preenchido de sentimento e emoção, como se ver na obra de Cunha Lima. Essa condição permite, muitas vezes, trocadilhos de idéias e de palavras para melhor dizer a sensação e temperar com mais graça o dito poético como é próprio de todo nordestino e o poeta em questão não se furta a essa perspectiva:

Praça Coronel Antonio Pessoa

Hoje, qualquer pessoa,
Sem entender de quartel,
Tal erro não cometia,
Invertendo a hierarquia
Das patentes no papel:
Se é coronel, não é Praça;
Se é Praça, não é Coronel!
As andorinhas
As andorinhas da Praça da Bandeira
Voavam sempre em rebanho.
Buscando novas guaridas,
Na praça tomavam banho,
Mas não ficavam despidas.

Como se observa, a palavra rebanho dá, às andorinhas, uma condição especial, assim como apreende a paisagem do espaço. O trocadilho de palavras no poema anterior mostra o fenômeno polissêmico da língua, que enriquece a linguagem poética quando bem utilizado. Todos esses aspectos são alimentados pelo imaginário e mitificados pelo poder poético.

Hoje muitos dos nossos jovens conhecem por praça apenas o lugar largo e agradável para encontros ou recolhimento de muitos, no entanto, praça também era o nome designado para os soldados, aqueles que se alistavam no exército, por exemplo, sentavam praça. Sendo assim, mesmo fazendo parte da vida militar, o Praça não era um coronel, pois a patente de coronel era, hierarquicamente maior, daí a brincadeira do eu poético com a irônica coincidência de se dar o nome de um coronel a uma praça.

Cada reconfiguração do espaço abstrato dá a ele a condição mítica de existir, de dizer-se a si mesmo, uma vez que o mito não se explica apenas se diz. Para Tuan (1983 ), há dois tipos de espaço mítico, um é a área imprecisa formada a partir de um conhecimento empírico que emoldura o espaço pragmático e o outro, compreende uma visão de mundo, ou seja, “a conceituação de valores locais por meio da qual as pessoas realizam suas atividades práticas” (p. 97).

Dentro desse espaço-lugar de praticas locais, o poeta restringe-o e mostra um recanto de excluídos, mas que era um mundo para quem ali vivia ou um mundo temporário para quem o visitava. O poeta mostra, de forma naturalista, a condição de estar no mundo, de pessoas que fazem parte de um determinado grupo ou mundo a parte. Assim, ele traz à tona, a vida noturna dos recôncavos escondidos da sociedade onde tantos procuram guarida nos braços desconhecidos e pagos pelo carinho consumido e não valorizado:

Cabarés

Músicas Flébeis – luzes encobertas
Filtrando vultos tristes que ali estão
Mulheres de per si, coxas alertas
E abertas ao prazer da profissão.

Mulheres nuas, nos quartos, despertas
Trocando o amor da carne pelo pão
Num fétido mercado onde as ofertas
Cortejam o gozo da devassidão.

Cruéis, dessas mulheres, seus destinos!
Lembradas, vez a vez, por libertinos
Enquanto a mocidade anda a seus pés,

São como o tempo, larvais das madrugadas,
Pelo mundo e de tudo abandonadas,
Rejeitadas dos próprios cabarés.

O eu poético descreve o espaço escuso, simbolizado pelas luzes: “luzes encobertas”, mostra a submissão das mulheres que ali estavam de forma sutil e ao mesmo tempo direta: “coxas alertas”. Nesse contexto não se vê um sentimento de saudade, mas de indignação pela situação de pessoas coisificadas e a relação cruel e hipócrita de uma sociedade que rejeita e ao mesmo tempo se alimenta da miserabilidade do outro.

O espaço passa a fazer parte da vida de quem o ocupa, criando um vínculo sentimental que pode vir à tona de várias formas. Na obra em questão esses espaços emergem através dos versos e dentro de um saudosismo que reforça a relação emocional do espaço com o eu poético e reconfigura o que já foi transformado como em “ O encontro das águas”

Bom dia Açude Novo, vim depressa
Do centro, pelo bairro São José,
Até um seu aparelho e, em Catolé,
Pela Paulo Frontin firmei promessa.

Dentre outras ruas fiz caminho à beça
Nesses esforço de vencer a pé
A Janúncio Ferreira, andando até
A Augusto dos Anjos donde a pressa

Na praça se fez sombra verdejante
Da natureza e ali, por um instante,
Desfiz das contas todas de minha mágoa,

Correndo a Floriano por inteira
A te trazer, colhido à ribanceira
O Açude Velho neste copo d’água.

O fato de colocar o açude em um copo d’água expressa o impossível da poesia e o poder do imaginário que permite sonhar e viver uma realidade idealizada. Vê-se que a natureza aparece como “remédio” das dores da alma: “Da natureza e ali, por um instante/Desfiz das contas todas de minha mágoa”.

O eu poético corta a cidade e a expõe geograficamente no poema além de personificar os lugares e ruas por onde passou no afã de cumprir o desejo de romântico e, num vassalismo amoroso, oferecer a água ao açude seco, como um amante ofereceria a rosa colhida, com muito esforço, à sua amada.

PERTENCIMENTO E IDENTIDADE AO LUGAR DE RAÍZES

Ao tratar de identidade nos reportamos a um fragmento de Zygmut Bauman, do livro identidade, no sentido de esclarecer o sentimento e o processo que nos evidencia perante o outro, ou seja, o que nos faz ser o que somos, primeiro para nós mesmo e depois para os que nos veem:

"Segundo o antigo costume da Universidade Charles, de Praga, o hino nacional do país da pessoa que está recebendo o título de doutor honoris causa é tocado durante a cerimônia de outorga. Quando chegou a minha vez de receber essa honraria, pediram-me que escolhesse entre os hinos da Grã-Bretanha e da Polônia. Bem, não me foi fácil encontrar a resposta. A Grã-Bretanha foi o país que escolhi e pelo qual fui escolhido por meio de uma oferta para lecionar, já que eu não poderia permanecer na Polônia, país em que nasci, pois tinham me tirado o direito de ensinar. Mas lá na Grã-Bretanha, eu era um estrangeiro, um recém-chegado – não fazia muito tempo, um refugiado de outro país, um estranho. Depois disso naturalizei-me britânico, mas, uma vez recém-chegado, será possível abandonar essa condição algum dia?" [... ] (BAUMAN, 2005 p. 15)

A identidade é uma denominação cheia de significado que dá ao indivíduo a percepção de ser no mundo. Por outro lado ela é percebida justamente pelo modo de pensar e agir de cada sujeito. Ao pensar identidade pensa-se o sujeito e atribui-se a ele “qualidades” que o enquadram em uma determinada situação, uma vez que essa é constituída de aspectos que formam esse indivíduo.

Entre esses aspectos estão o social, o religioso, o cultural e intelectual, além de delimitar esse sujeito em um determinado espaço e tempo, dando a ele a “significação” de ser, que vai distingui-lo entre os demais e colocá-lo em suas raízes, ou seja, atribuí-lo como fruto de uma árvore plantada em um determinado território-lugar, seja por naturalidade (nascimento) e continuação ou por relação de amor de um filho adotivo.

As ações do sujeito permitem vê-lo como pertencente a um espaço-mundo e dão também a noção de sua relação com as raízes locais, ou seja, o seu dizer-se e o como o faz, é que vão dar a sua condição de pertencimento a um determinado lugar e sua autonomia enquanto cidadão do mundo. Muitas vezes, na valorização do espaço está a valorização de si e a qualificação da identidade que fica marcada em cada palavra, verso, frase e pensamentos que provém do sujeito em cada situação vivida. Assim, Bauman diz que:

"Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o pertencimento quanto para a identidade". (2005 p. 17)

É nessa perspectiva que vamos encontrar um cidadão campinense, um sujeito pertencente de um lugar e a identidade paraibana, nordestina, agreste do eu poético de Roteiro Sentimental. Um eu que vagueia no seu roteiro e que se diz em cada parada quando diz o lugar; é a reafirmação do pertencimento ao espaço raízes; é se fazer fruto e ramo da árvore Campina:

Muito mais

Letra por letra, na ponta dos dedos
Cantando sons esconsos nas escritas,
Busco encontrar palavras mais bonitas
Que traduzam meus sonhos, meus segredos...

Por esse meu sentir, esses enredos,
Expressões encantadas foram ditas,
Versos e prosas, rimas expeditas
No querer e expressão de outros aedos.

Mas se a mente abstida não me assiste,
Se um muito-mais-que-muito não existe,
Se ao que canto, outros cantos são iguais,

Só me resta dizer-te a tanta lida,
Campina Grande, és bem maior que a vida,
Pois que te amo muitas vezes mais!

Quando um poeta se dispõe a cantar, nos dá, muitas vez, através do título de um poema, uma pista do que se lê em seguida. Muito mais expressa algo que está no limite de ser, extravasa a condição de sentir do eu poético, segundo o qual, outros podem cantar o mesmo tema, mas não com o mesmo sentimento. Esse aspecto se evidencia na hipérbole “muito-mais-que-muito”, no segundo verso da terceira estrofe para reafirmar que seu sentimento é indizível, que as palavras não são bastantes para tanto. A necessidade de expressão de um sentimento que é maior do que a própria condição de sentir faz com que esse eu poético continue na “lida”, como ele mesmo diz e ilustre o texto com as imagens, hiperbolicamente idealizadas para se fazer traduzir ao leitor, nos versos finais do poema.

Diz Yi-Fu Tuan (1983 p. 138) que:

Sob a influência da imagem, pintada ou captada pela máquina fotográfica, aprendemos a organizar os elementos visuais em uma dramática estrutura espaço-temporal. Quando olhamos uma cena campestre, quase automaticamente arranjamos os seus elementos de modo que fiquem colocados ao longo do caminho que desaparece no horizonte.

Partindo da idéia de Tuan vê-se que na obra de Cunha Lima, o eu poético capta as imagens com a força do sentimento pela máquina fotográfica da memória que transgride a ação do tempo e encurta o espaço entre o ontem e o hoje. Vê-se um contexto melancólico em que o eu poético busca, a todo custo, reviver lugares para um preenchimento da vaguidão de ser que, hoje, se revela e para a refacção de valores de outrora, hoje em desuso. Essa visão de reconciliação com os valores perdidos fica clara no poema que se segue:

Alto Branco

Da Rua Agamenon Magalhães, vejo
A noite a se esmerar no prateado
Da lua ou se abraçar ao chuviscado
De um sereno pranto, o frio bafejo

Dos céus molhando o asfalto no cortejo
De refletir estrelas ao meu lado,
Lucilando em meus olhos do passado
Novas ânsias de amor e de desejo.

Em insone inquietude, aqui do alto
Remiro o brilho fosco do asfalto
Listando em ziguezague o Alto Branco

Que passo a passo já fez a entrada
De Campina a dormir a madrugada
Desses versos que dentro d’alma arranco.

Percebe-se no poema, um encadeamento que não foge a condição pós-moderna, é como se tivesse que ser lido em um só fôlego, como se o ar que falta a quem trafega por íngremes caminhos, faltasse ao leitor. Esse aspecto reflete o sentimento do eu poético que está no alto e vê a cidade em nível mais baixo. Essa diferença de altitude do espaço remete também a condição do passado, ou seja, é como se ele olhasse para baixo e assistisse ao vivido: “Em insone inquietude/ aqui do alto/ Remiro o brilho fosco do asfalto/ Listando em ziguezague o Alto Branco”

O ufanismo saudosista é evidente, as imagens criadas a partir da situação real vêm metaforizadas pela voz da poesia, que vai embalando a linguagem ululante e margenteia a imaginação também do leitor, que bebe do mesmo vinho do poeta. Assim, como diz Tuan, (2005 p.139) “ pode-se contemplar o tempo, simbolizados por objetos distantes no campo visual atual de uma pessoa”. Essa perspectiva é evidente em Cunha Lima durante toda obra e no poema abaixo:

Menino jornaleiro

Vestia-me de frio, e a madrugada
Sem fazer conta do mandapolão
Retocava de cinza a escuridão
No nevoeiro de minha caminhada

Primeiro, a estação e a chegada
Das notas lidas com sofreguidão
Nos jornais semeados pelo chão,
Compulsando a manchete mais ousada.

“É o Jornal do Comércio! Aprovada
pela classe operária a decisão
de Getúlio: uma nova concessão
de aumento no salário é assinada!”

Rua João Suassuna, hora marcada
Rua da Areia, da Floresta e então
Tentava abrir caminho à indução
Do “Diário”, de entrega programada.

Na Índios Cariris, cada abordada
Fazendo amigos no aperto de mão
Getúlio Vargas, sempre em direção
À Rui Barbosa na roda da estrada.

Pela Venâncio Neiva ampliada
No traçado do tempo e na ilusão
De ler, crescer, vencer a condição:
Ser um dia manchete anunciada!

Os pés em brasa, a mente já cansada,
A voz rouca cansando o ramerrão,
Dos jornais esgotada a edição
Seguia os passos da volta abençoada.

Dona Nenzinha me esperava à entrada
Da Sólon de Lucena, o coração
Rezando as rezas de sua devoção,
As mãos de cura, como mãos de fada

Me livravam do peso da jornada
E me serviam de abrigo à condução
Do deleite do leite quente e do pão
Que eu comia enquanto ela contava

O apurado do dia – a paz firmada[...]

O eu poético vai caminhando e leva com ele o leitor que não pode ignorar pontos espaciais e marcas culturais e históricas que vão sendo soltas ao longo do poema. A primeira estrofe dá a noção do clima da cidade, contemplando os fenômenos meteorológicos expressos no texto. Ao mesmo tempo, a natureza externa desenha o ambiente e diagnostica a frieza da saída que se contrapõe ao calor da chegada ao “ninho” e os braços da mãe.

É difícil cortar um poema encadeado de sentimento e de emoção, mas isso se faz necessário ao espaço desse estudo, porém no deleite da recordação de menino vê-se a reconfiguração de imagens e a quebra da barreira do tempo pela memória que revive a emoção de outrora. A mãe Nenzinha e a mãe Campina acolhem o menino hoje saudoso pelo afago de seus colos de outrora. Através dos aspectos que simbolizam o sentimento poético, o leitor é levado a viver cada situação, cada momento e partilhar desse sentimento que hoje oprime o peito melancólico do poeta.

Através dos poemas de Roteiro Sentimental somos convidados a entrar em um ambiente construído no passado e imaginar ou reconstruir esses ambientes, pois, diante de um panorama, nossa mente está livre para devanear e essa condição é dada pelo poeta nos lugares que revisita e nos personagens que encontra na sua caminhada. Assim, faz com que cada leitor caminhe pelo tempo e conheça esses ambientes por sua própria percepção a partir do que é exposto pelo eu poético, uma vez que o espaço tem significado temporal nas reflexões do poeta que, misticamente, migra e explora os recantos, juntamente com o leitor que é guiado por ele. Esses aspectos também se evidenciam no poema a seguir:

Nos passos de São José

Em minha infância as ruas se guardavam
Do grande de Campina e circulavam
A Sólon de Lucena onde eu crescia.
Ruas pequenas, que os meus pés juntavam
Umas às outras e que assim formavam
O centro do universo em que eu vivia

A Frei Caneca, Rua Tiradentes,
Treze de Maio, como adjacentes.
Da Rui Barbosa – enredo de alameda
Aos sonhos que sonhei quando menino
Cantando o amor tal qual se fora um hino
A sílfide figura envolta em seda.

De alma leve, o corpo de moleque,
Descia a Otacílio de Albuquerque,
Buscando os horizontes de minha fé
Que alcançava, no alcance da João Moura,
Tocado pela crença imorredoura
Da virtude de um santo: São José [...]

Mais uma vez se vê um poeta que brinca com as palavras e traz cantos, recantos, lugares de ontem, revividos pela memória, ignorando a ação do tempo. O ludismo que Cunha Lima põe em seus poemas aproxima-o muito mais do leitor. Possui uma linguagem leve, que saltita nos cantos da cidade e leva o leitor pela mão da imaginação: “Ruas pequenas, que os meus pés juntavam”. É um passeio de saudade com valores apreciados, reafirmados para quem, por acaso, não os tenha.

Aos poucos a cidade vai se desvendando, mesmo os lugares mais obscuros vão sendo decantados de forma que se vão quebrando também possíveis pré-conceitos sobre alguns lugares. Também se vão desfazendo as falsas ideologias dos recantos que para muitos soa como um não-lugar. O eu poético reconstrói uma essência para cada espaço na medida em que preenche-o de sentimentos e de imaginação.

De acordo com Bauman, na sociedade de hoje, de princípios culturais fragmentados e posições espaciais migratórias, poucos podem afirmar-se como pertencentes a um espaço-lugar, nação ou um grupo cultural, uma vez que a liquidez atinge a vida do sujeito em todos os ângulos. Nessa perspectiva o autor afirma que:

"Poucos de nós, se é que alguém, são expostos apenas uma comunidade de ideias e princípios de cada vez, de modo que a memória problemas semelhantes com a questão da I’ipsérte (a coerência daquilo que nos distingue como pessoa, o que quer que seja)". (2005, p. 19)

Nessa perspectiva, reafirma-se a percepção da identidade de Cunha Lima e o seu pertencimento ao lugar de raízes, mesmo com experiências vividas em outros locais e regiões do país. Campina Grande foi o berço que o acalentou e continua sendo o colo que o acolhe assim como pode vir a ser o ventre que o receberá de volta, na condição comum a todos os viventes.

Para Bauman a discussão sobre identidade, até algum tempo atrás, não seria viável, hoje, porém, no desacerto da modernidade, ela se faz necessária uma vez que o indivíduo não encontra-se nacionalmente ou culturalmente em um determinado espaço. Assim “a idéia de identidade nasceu da crise de pertencimento e do espaço que está desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o “deve” e o “é” (2005, p. 26).

Essa condição de pertencimento que falta hoje é negligenciada pela falta de autoafirmação identitária, principalmente nos jovens e provoca a necessidade de estudos que possam ajudar, de alguma forma, o indivíduo a se encontrar em um determinado espaço-ambiente social e cultural, uma vez que “ a identidade social é uma representação relativa do mundo social e, portanto, intimamente vinculada as questões de reconhecimento”.(PENA, 1998, p. 93).

Esse reconhecimento se relaciona com a consciência de si e do outro, assim como do lugar onde vive. O conhecimento pode vir naturalmente pela busca de ser, ou através de algo que possa assegurar pelo exemplo, os valores essenciais à condição identitária de nação, de lugar e de espaço-ambiente. O lugar de memória de Cunha Lima coloca-o como sujeito pertencente a um espaço raízes e dar-lhe a condição de cidadão campinense, não pelas honrarias, mas pelo coração que chora a saudade do menino Ronaldo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra aqui estudada dá ao leitor, especialmente ao campinense, a possibilidade de reflexão de valores desconhecidos que o enquadre em determinado “mundo”, valores, muitas vezes, usurpados pelo sistema midiático que atende ao capitalismo globalizador e tira, principalmente dos jovens, o direito a uma identidade a partir dos próprios princípios e o restringe a ser mais um ao invés de um ser distinto e imbuído de valores próprios.

O autor perpassa todos os espaços vividos e dá a eles uma essência, porque o alimenta com um sentimento de pertencimento. Através dos espaços contemplados pelo eu poético é possível perceber a reflexão cultural, histórica e climática da cidade e desconstruir falsos valores mitologicamente apreendidos pelas gerações mais jovens.

Assim, a obra traz também o colo campinense para acolher o filho pródigo que, por necessidade de migração ou vergonha de “ser”, deixou os braços da Mãe e para aqueles adotivos que se fizeram pertencer pelo amor e pelo carinho a uma terra de muitos Brasis que reescreve sua história a cada dia.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro – Jorge Zahar, 2005.
BERNARDES, Júlio Adão e FERREIRA Francisco P. de Miranda. Sociedade e natureza. In A questão ambiental: diferentes abordagens. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2007.
CANCLIN, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: UERJ, 2005
CAVALCANTI, Lana de Souza. Geografia, escola e construção de conhecimentos. Campinas- SP: DIFEL, 1998.
CUNHA LIMA, Ronaldo. Roteiro Sentimental: Fragmentos urbanos e humanos de Campina Grande. João Pessoa – PB :Grafset 2001.
_____________________. Eu nas entrelinhas. João Pessoa-PB: Forma, 2004.
FIGUEIREDO, Eurídice. Identidade Nacional e Identidade cultural. In Conceitos de Literatura e cultura. Rio de Janeiro: UFJF/EDUFF 2000.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. (Trad.) Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PENA, Maura. Relatos de Migrantes: Questionando as noções de perda de identidade e desenraizamento in Língua(gem) e identidade: Elementos para uma discussão no campo aplicado. Rio de Janeiro: FAPESP, 1998.
SANTOS, Milton. A Natureza do espaço- técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2006
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meioambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.
____________. Espaço e Lugar: A perspectiva da experiência. São Paulo, DIFEL, 1983.
____________. Geografia Humanista. In Perspectivas da Geografia. São Paulo: DIFEL 1982.

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